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segunda-feira, 27 de abril de 2009

COMO NASCE UM ESCRITOR

Autor:Nilson da Cunha Gonçalves
A linguagem escrita, que surgiu há mais de cinco mil anos, nasceu de uma necessidade e uma possibilidade do ser humano. A necessidade era a de ampliar sua capacidade de comunicação com os semelhantes e de poder fazê-lo mesmo estando ausente. A possibilidade lhe foi legada pela evolução da espécie, que liberou dois de seus membros para serem usados em inúmeras atividades outras que não a locomoção, entre essas rabiscar signos e agrupá-los em seqüências com infinitas possibilidades de comunicação.Desde o tempo das cavernas, quando os escritores ancestrais riscavam nas rochas suas mensagens, até os dias de hoje, do computador e da Internet, o que sempre moveu o ser humano a escrever foi a possibilidade de ter, em algum momento, um leitor a compartilhar de suas idéias, e às vezes também de suas emoções.Mas, como nasce um escritor, um romancista, um contista, um poeta?No caso da poesia é difícil teorizar sobre o que leva alguém a construir seus versos. Talvez o poeta Luis Carlos Guimarães esteja correto ao afirmar que “a tentação da poesia mora no coração de cada homem”. Pode ter exagerado ao afirmar que para assinalar o eleito basta apenas um livro, mas é provável que tenha acertado ao dizer que até mesmo um poema, único que seja, pode ser suficiente para anunciar: aqui temos um poeta. Diríamos mais: uma emoção, um frêmito, um cintilar de beleza no olhar de um leitor frente a uma poesia, são sinais que anunciam o poeta em potencial. As palavras inseridas nos poemas têm por objetivo consciente ou inconsciente ultrapassar sua sintaxe e semântica, atingindo uma pragmática que se materializa em mudança de comportamento. Mudança esta ditada pela emoção e pelo fascínio que sua beleza desperta. O menor gesto que o demonstre é sinal de que alcançaram o objetivo.Será talvez mais correto afirmar que uma pessoa não se torna poeta por um ato de vontade consciente, mas que se é tomado e dominado sem apelação pela poesia. Os versos do poema Profesión, do índio equatoriano Augustin Jesús Gavardhy, mostram muito bem este rito de profunda sujeição e devotamento à poesia:“La poesia estaba en la encrucijada de la salvacion/ y cayó en mi rostro com la lluvia/ de siete colores del arco iris./ Al conocerla di el primero paso hacia demnación/ y se encendió una hoguera en mi alma.”Assim, tomado por esse fogo interior, “vive aceso o poeta, em alta voltagem lírica. A poesia torna-se razão de ser, respiração e vivência, testemunho de inquietação interior, objeto de criação pela captação da realidade em dado momento”. O poeta é acima de tudo um buscador, na procura incessante da realidade maior da realidade, como disse com precisão Carlos Drumond de Andrade. Busca o poeta a verdade absoluta, tal como o faz o filósofo, mas diferentemente deste que a procura com a face neutra, o poeta o faz com um indisfarçável brilho colorido no olhar, na expectativa de encontrar, mais que a fonte da verdade absoluta, a fonte da beleza absoluta.Como motivação primeira para essa busca está a realidade última de cada ser humano, o que foi exemplarmente expresso no verso do poeta Salvatore Quasimodo: “Cada um de nós está no coração da terra, atravessado por um raio de sol. E subitamente é noite”. E nessa busca, nessa procura de caminhos de salvação, nunca deve o poeta ignorar o mundo e o tempo em que vive. Deve se expressar tal como Nikos Kazantzákis ao anunciar que “sua alma é um único e ininterrupto grito e sua obra é a interpretação desse grito”.O poeta, como todo artista, leva consigo a necessidade imperiosa de expressar pelo seu grito a sua verdade em oposição à verdade que o mundo lhe impõe. E esse grito é em essência uma confissão de si mesmo e de como vê o mundo. E ao se expor assim, seu grito tanto pode ser a confissão de seu triunfo, como também de sua derrota. “Assim busca ser o catalisador do imponderável. Tudo nele persegue uma contemplação severa do que se passa no seu espírito. E por mais que tente, pela nossa interpretação, nunca ele se apresentará por inteiro, porque jamais haverá precisão quando se fala de um homem. Muito menos quando se quer mostrar um ser humano que não se resigna à solidão”.A solidão... A solidão é a motivação segunda a perfurar e a contaminar a veia do poeta em potencial. Pois, como diz Luiz Carlos Guimarães, “todos nós, poetas ou não, abrigamos nos escaninhos da alma, no mais recôndito da mente, na noite do coração, sentimentos de tristeza e desolação.” Quantas solidões, assim mesmo no plural, arrastamos pela vida afora como trágicos apêndices a preencher de tristezas tantos de nossos dias?Ao cantar o amor, a solidão e a morte como temas mais freqüentes em sua produção artística, parece que cada poeta pôde provar um dia a essência da unicidade e da eternidade na ventura mágica do amor. Mas fugaz como chama que se apaga, fica-lhe a solidão, companheira inseparável do restante de seus dias.Como todos os seres humanos que vivem suas solidões, quase sempre inconfessáveis, o poeta as vive mais intensamente que os demais, pois pôde um dia sentir a beleza suprema do que o amor foi capaz de construir em sua alma. E é isso que o faz seguir em frente: a ânsia do reencontro, de reviver o momento mágico. E ao construir um poema e ver sua emoção compartilhada é, de certa forma, reviver um pouco dessa magia. Parece que no fundo carrega a convicção de que cada determinado poema tem a imponderável capacidade de abrir uma veia sensível em cada determinado coração. E é esse toque de magia — que não se sabe onde nem quando vai acontecer — que o faz enternecer e pulsar alegremente, embalado pela emoção de um momento único. Para cada coração há o poema certo no momento certo. O que é necessário é que haja o encontro. E de forma surpreendente, não é incomum que “um poema tratando de um dado assunto possa comunicar por vezes o que não pretendia, por força e mistério da própria poesia. Uma nuvem que passa assume a forma de um sobrado, de um navio entrando no porto, de um tigre de olhos chamejantes saltando sobre a presa nas savanas africanas”.Enfim, a poesia é para o poeta razão de ser, respiração, essencialidade. É o cajado com o qual pode se sustentar para vadear com segurança o rio da vida, até o encontro com o imponderável na margem oposta.Com relação à prosa, se não é uma paixão arrebatadora pela qual se é tomado tal como na poesia, ela é com certeza a possibilidade de desenvolver uma das mais desafiadoras capacidades do ser humano: a da criação. E essa parece ser uma necessidade vital daqueles que se vêem capturados pelo seu perigoso fascínio. É a esfinge com seu enigma, em permanente desafio. Decifra-me ou te devoro. Os que o aceitam não sabem, talvez, o perigo que correm. Têm o monstro da teratologia a espreitá-los, à espera de um momento de descuido. Talvez venha daí mesmo seu imensurável fascínio. Gestar, criar e labutar para que a criação seja da maior perfeição possível.Com o desenvolvimento da linguagem escrita, nossos escritores mais remotos puderam expressar a realidade do tempo em que viviam e uma rica ficção assentada em fatos e crenças, pôde se desenvolver de forma espontânea e natural. A realidade do mundo psíquico se fundia com a realidade do mundo físico e seus personagens eram a expressão da interação entre consciente e inconsciente, entre deuses e mortais. E desde os primeiros relatos, sempre foram exaltados valores do ser humano que transcendem ao tempo, como a coragem, o heroísmo, o amor, a amizade. Estes, se contrapondo ao medo, à covardia, ao ódio, à perfídia, à traição.É inaceitável o ponto de vista de autores que dizem se manter neutros na construção de seus personagens, expressando tão somente os valores de época, ancorados que estão, dizem, sobre a mais candente realidade. O mundo que apreendemos por meio de nossos sentidos nunca será expresso em sua exata dimensão, pois estará sempre passível de deformidades na maneira como o captamos, como estará submetido ao filtro crítico daquilo com que fomos construídos como seres humanos ao tentarmos expressá-lo. Assim é que o comportamento de cada personagem, o ângulo pelo qual nos é mostrado, estará direcionado em maior ou menor grau pela mão pretensamente invisível de seu autor.Sabemos que, ao longo do século XX, ocorreram profundas mudanças na forma literária do romance com o denominado modernismo. Tais mudanças podem ser observadas de forma marcante nas obras de Marcel Proust, James Joyce, Virgínia Woolf, Gabriel Garcia Marques. Porém, a realidade intrínseca daquele que escreve será sempre a base de qualquer ficção. É significativo que Garcia Márquez, prêmio Nobel de literatura com seu realismo fantástico em “Cem anos de solidão” tenha dito textualmente: “não se pode inventar ou imaginar o que der na telha, porque se corre o risco de dizer mentiras e as mentiras são mais graves na literatura que na vida real. Dentro da maior arbitrariedade aparente, existem leis. A gente pode tirar a folha de parreira racionalista, sob a condição de não cair no caos, no irracionalismo total. A fonte de criação, afinal de contas, é sempre a realidade. E fantasia, ou seja, a invenção pura e simples, à Walt Disney, sem nenhum pé na realidade, é a coisa mais detestável que pode haver”.Ao tomarmos contato com biografias, artigos e entrevistas dos mais célebres escritores de todos os tempos, o que parece ser condição sine qua non para o desenvolvimento dessa forma de arte é o interesse precoce e voraz pela leitura. Salta aos olhos que para ser bom escritor é preciso antes de tudo ter sido bom leitor, de boa literatura. Mais uma vez é Garcia Márquez que, com suas exageradas frases mágicas, assinala esta verdade no início de sua carreira de escritor: “decidi ler todos os romances importantes que tivessem sido escritos, desde o começo da humanidade, inclusive a Bíblia”.O escritor em potencial estará construindo a bagagem necessária desde que seja um leitor com volúpia e que além de submergir ludicamente no oceano ficcional dos autores que leu, seja capaz de extrair as nuances da fina arte de escrever. Porém, basta isso para ser escritor? A resposta é: não! Escrever em prosa é uma construção. E semelhante ao arquiteto que pode dispor de material de primeiríssima qualidade para construir alicerces e erguer paredes, e de material de requintadas formas e beleza para executar o acabamento, também o escritor pode contar com vasto vocabulário e uma perfeita sintaxe para construir belas frases, porém tanto um como outro podem chegar ao final de sua obra com algo feio e disforme. Ter capacidade de usar bem as palavras, de construir belas frases, mas inseri-las em um arcabouço sem pé nem cabeça, é como lançar ao pântano pepitas de ouro.Para finalizar, o que é em essência ser um escritor? Deixando de lado qualquer teorização, o fato inegável é que o escritor nada mais é que uma testemunha. “Testemunha da vida e do que dela flui como as águas de um rio. Testemunha do sofrimento, da dor, do amor, do sonho, da felicidade (ou dos fugazes momentos em que ela se apresenta), da solidão, dos dramas da existência, da beleza, da natureza, dos comportamentos, das doenças do corpo e também as da alma”. Enfim, da infinita gama de situações que a vida nos oferece. Pinta a tua aldeia e estarás pintando o mundo, aconselhava Tolstoi. Cada escritor poderá pintar o mundo na medida em que descreve em seus personagens, do mais complexo ao mais simples, essa aldeia multitudinária que cada um carrega dentro de si.Há aqueles que preferem dissecar o ser humano buscando extrair e nos apresentar apenas aquilo que de mais tortuoso, obscuro e deformado ele traz consigo. E para alguns, isso parece ser tudo o que podem enxergar. Outros parecem negar a escuridão da alma humana, que nos é apresentada em uma aura quinta-essenciada. Nada de errado com tais preferências, embora o maniqueísmo nos apresente sempre uma visão parcial do ser humano.Quanto a mim, tornar-me escritor é dar um passo além do que a medicina me proporcionou: ver o ser humano em sua completa dimensão, dentro daquilo que nossa limitada capacidade de percepção permite. O ser físico com suas mazelas corporais, o ser psicoemocional, com seus sofrimentos e alegrias, o ser social, com seus ajustes e desajustes relacionais e o ser espiritual com toda sua capacidade de transcendência.O passo além é compartilhar visões muito particulares de um ser humano já amadurecido. Ao longo do tempo vivido desempenhei variados papeis que a vida nos apresenta: filho, irmão, pai, marido, avô, médico, doente, apaixonado, desesperado. E tantos outros. Lanço-me como escritor porque tenho vivido e acredito poder trazer uma réstia de luz que seja sobre nuanças do comportamento humano. O personagem da vida real anseia por libertar o que trás preso em si: mil personagens da ficção, cada um deles levando consigo um pequeno facho de luz na mão..

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